E se, longe de meramente “irreais”, “delirantes”, “oníricas”, “indevidas”, “alucinatórias”, as fantasias habitassem nada menos do que o centro das nossas operações intelectuais e do modo como interpretamos aquilo que chamamos de realidade? E se, ali no coração da objetividade identificadora e supostamente isenta, ou da cisão entre sujeito e objeto, a fantasia irrompesse como elemento definidor e delimitador do mundo e dos fenômenos que percebemos?    

O livro A fantasia e as fantasias: um conceito e suas figuras, de Imaculada Kangussu, menos que oferecer uma definição conclusiva e aprisionadora de um termo que permanece, na verdade, vinculado à sua rebeldia criativa e constitutiva, aponta para a fantasia como uma força viva responsável por “encobrir um vazio”, isto é, por realizar o preenchimento parcial de uma lacuna que pode ser, entre outras, social, sexual, existencial. Nesse sentido, segundo as palavras da autora, “atravessar a fantasia exige a percepção da existência do vazio e a percepção de que os objetos do desejo são as máscaras desta percepção quase insuportável”. Impossível de ser superada, a fantasia permanece, contudo, como um operador estruturante – não raro silencioso – da realidade, um elemento que precisa ser, portanto, averiguado, examinado. Ora, não seria essa, aliás, justamente a tarefa que A fantasia e as fantasias ao mesmo tempo encara e formula, a partir dos cinco capítulos que oferecem uma reinterpretação original, erudita e bastante inventiva de cenas decisivas da própria história da filosofia?  

Em suma, o volume que você tem em mãos, além de empreender uma análise apurada das diferentes cenas e figurações históricas do conceito de fantasia de Platão a Oswald de Andrade e além, constitui, acima de tudo, uma exposição do entrelaçamento inevitável entre desejo e realidade e do modo como esse laço foi concebido pela filosofia ao longo dos tempos. A fantasia, nesse esquema, menos que exceção, revela-se regra incontornável nas elaborações da imaginação humana.

Por André Cechinel